As Consequências da Ignorância




Aquela frase que afirma que respeitando somos respeitados é inválida em diversos ambientes. Pude  sentir isso na pele quando mais nova. 
Me chamam de Déia. Tenho trinta e cinco anos, sou gordinha e tenho altura baixa, cabelos longos e lisos por progressiva. Passei por muitos perrengues até chegar onde estou. Já levei cuspe na cara no primário, já me disseram que eu tinha cheiro de fezes e é transbordando lágrimas de vergonha que escrevo isso. Não gosto de lembrar.

Vim de família carente, onde aos finais de ano, não haviam condições de montar uma árvore de Natal. Minha mãe era empregada doméstica, o dinheiro era contado para a compra do mês. Mas todo dia 31 de dezembro, minha mãe sempre juntava as moedas para me levar até o centro de São Paulo para acompanhar os fogos, enquanto comia um pão com linguiça ou carne. Era o dia mais esperado de todos os anos da minha infância, a minha felicidade mal cabia em meu corpo pequeno e magro. 

Lembro que sempre repartia meu pão com os cachorrinhos na rua, que se escondiam nos becos escuros por conta dos altos barulhos de fogos, buzinas, etc. Minha mãe sempre me puxava pelo braço quando eu ia procurá-los, mas eu ia mesmo assim.
Com dias e noites de estudo, aos vinte anos, consegui, pelo Enem, uma bolsa para cursar meu sonho: medicina veterinária. 
Lembro que minha mãe chorou de alegria, como uma criança ao receber um brinquedo. Era festa em nossa humilde casa.
Tive a sorte de ter a faculdade perto de casa; assim, não gastaria dinheiro com conduções. No primeiro dia de aula, coloquei meu caderno e minha caneta dentro de minha bolsa do governo, fiz um coque, coloquei uma roupa simples e fui. Com um sorriso que mal cabia em minha boca. Ao chegar lá, foram mútuos os olhares estranhos, como se eu tivesse incomodando as pessoas. 

Olhei-me para ver se havia algo de errado em minha roupa, mas estava tudo normal.
Ao entrar na sala, a professora me apresentou e ouvi algumas risadas lá no fundo, quando olhei, havia uma menina ruiva rindo, logo que olhei-a, ela me questionou grosseiramente:
— Que foi?
Virei de volta para a professora.
Os dias se passaram. Mesmo que eu estivesse muito feliz com o fato de ter conseguido a bolsa, estava triste, pois não tinha conseguido nenhum amigo ou amiga. Houve um dia em que tentei me juntar com algumas meninas no refeitório, que estavam numa mesa onde só havia um banco vago. Quando a tal ruiva chegou e já disse que era o lugar dela. Ela pôs a mão em meu peito com um copo de suco de uva, o suco foi parar na minha blusa que era a única sem buracos que eu tinha para estudar.

— Oh, desculpa aí, fofa. Foi sem querer. — falou sarcasticamente.
— Magina, tudo bem.
Quando saí, as meninas estavam tampando seus narizes, acho que eu cheirava mal.
Lembro de ter chorado muito em casa naquele dia, escondida de minha mãe. Eu sabia que aquilo não foi sem querer. Estava difícil, mas precisava continuar com meu sonho.

Passaram-se cinco anos, estávamos no fim do curso. Eu já estava acostumada com as rejeições. Fiz amizade com um rapaz muito simpático, o qual me deu bastante suporte psicológico, mas o namorado dele era muito ciumento... Então não dava para ficarmos juntos sempre. Eu estava bem, me destacava e ficava com vontade de seguir aquele sonho cada vez mais.
Terminamos o curso, minha cabeça já era diferente, mais segura de mim e mais confiante em dar uma vida melhor para minha mãe. Consegui um estágio e me destaquei devido ao carinho e cuidado que tratava os animais desde que pisei dentro daquele grande consultório. 

Uma médica engravidou, e minha chefe, que era um amor, me escolheu para ocupar seu lugar. Nem preciso dizer que fiquei nas nuvens, não é? Ela me disse com firmeza:
— Agarra essa chance! — me abraçando com um lindo poodle no colo.
Agarrei com todas as forças do universo. O melhor ainda estava por vir. A médica que estava de licença desistiu de trabalhar lá, preferiu se dedicar ao bebê. Minha superior me promoveu para Médica Veterinária! Isso mesmo!
Era festa no meu coração, na minha vida e na minha casa! Um dos dias mais felizes da minha existência.

Passaram-se alguns anos e o dinheiro para comprar blusas novas estava surgindo. Pude felizmente levar minha mãe para um banho de loja e um final de semana fora, melhoramos a casa e compramos um sofá M-A-R-A-V-I-L-H-O-S-O! Conseguimos nos mudar para uma casa muito linda. O aluguel era de R$600,00 e a casa era bem completa.
Ficou em aberto a minha vaga de estagiária por algumas semanas, após algumas meninas terem entrado e não ter dado certo.  Até que uma menina foi selecionada para fazer parte de nossa equipe. Não acreditei quando vi, era a tal ruiva da faculdade. Minha chefe a apresentou para mim, eu logo disse:

— Essa mocinha aqui eu já conheço!
Ela ficou cabisbaixa e sem reação, ela certamente lembrava de mim. Talvez tenha sido impactante me ver com uniforme de médica dos bichinhos (risos). Nunca vi uma pessoa tão envergonhada na vida.
Certo dia, tivemos de ficar até mais tarde, tinham alguns animais a mais para medicar, examinar e eu precisava de ajuda. Na mesma hora pensei em chamar a ruivinha. Fui até sua sala:
— Ei, qual seu nome? — apoiada na porta da salinha onde ela estava.
— Roberta.
— Prazer, Roberta! Você não gostaria de me ajudar ali com os nossos amiguinhos?
— Sério, eu posso?
— Com uma condição! Só se me prometer não jogar suco na minha camisa e não rir de mim, mesmo que eu seja pouco desastrada andando e tenha cheiro de cachorrinhos (risos)!
— Déia, me desculpa...
Cheguei mais perto e a abracei:
— Relaxa, mocinha. Agora é outra coisa. E aí, vamos lá?
— É claro!

Não guardei rancor, me ofereci de "âncora" para a menina que fez parte do meu passado infernal. Eu a perdoei, mas o destino não. Ela desistiu da vaga e disse não ser para ela. Bem que eu percebia, ela tocava nos bichinhos com cara de nojo... Imagine só, cinco anos jogados fora, cinco anos de ilusão e de distração, onde poderia usar tal tempo para decidir o que queria ao invés de desrespeitar os outros!

Pois é, minha gente! O respeito deve ser mútuo e universal. Mesmo que as pessoas perdoem umas as outras, a vida se encarrega de ser ainda mais severa, nos colocando em nossos devidos lugares.
Agora, deixa eu ir pro serviço! Estou com a agenda repleta de amiguinhos hoje, e isso não é nada ruim! Até mais!

- Juliane França.

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