A mulher que ficou lá fora

"Eu ganhei na loteria."

Era isso que eu dizia sempre que ele sorria. Meu dia poderia ter sido um inferno, mas quando ele me buscava, eu vestia uma máscara feliz, entrava no carro e batia a porta com força na cara de tudo que era negativo... Tudo pelo sorriso dele.

Vando havia perdido a irmã para a leucemia há algumas semanas. Já haviam tristezas demais, então eu esquecia de mim para trazer à tona aquele pouco de alegria nos dias em que nos víamos.

A gente esquecia de tudo que tinha lá fora. Dávamos gargalhadas, contávamos histórias de terror, trocávamos receitas culinárias e às vezes fazíamos o carro balançar um pouco. Era como se o carro dele fosse uma espécie de máquina do tempo, um portal para um mundo onde a irmã dele ainda estivesse viva. Mas com o tempo, senti falta da mulher que eu deixava para fora do carro. Cansada e precisando de um mínimo de atenção.

Infelizmente (ou felizmente) não consegui deixar aquela parte de mim abandonada por muito tempo e tive de romper os laços com Vando, propondo obviamente que a amizade continuasse.

"Tudo bem, Cidinha, desejo muitas felicidades."
Mas a realidade era outra. Vando estava todos os dias parado na porta do meu serviço como se nada tivesse acontecido. Nas primeiras vezes, entrei no carro e o deixei me levar, mas na última vez, ele forçou a mão dentro na minha calça, com um sorriso perturbador no rosto. Ameacei gritar.

"Ah, claro! Você está naqueles dias. Desculpe."
Informei ao porteiro da empresa que não deixasse mais ele entrar no estacionamento. O porteiro estranhou.
Aos finais de semana, o carro dele sempre estava na frente da minha casa.

Minha mãe me questionava do porquê de eu tratá-lo com indiferença mas quando eu ia responder, ela saia andando dizendo sempre a mesma coisa :"está um tempo feio e as roupas estão no varal".
Eu estava sozinha.

Todos acreditavam que éramos namorados felizes. Achavam que eu estava ficando louca, ou que eu não aguentei a pressão do luto dele. Então minha última saída era conversar com os pais dele.

Foi nunca terça-feira mesmo, novamente esqueci da minha exaustão para ir cuidar dele indo de encontro aos seus pais. De imediato, achei estranho... Às 18hrs e todas as luzes apagadas. Bati na porta e quem me atendeu foi Vando. Bom, eu não queria ele presente, mas seria uma boa jogar as cartas na mesa e ver o que estava acontecendo de uma vez.

"Vim falar com seus pais."
"Ah, sim! Espere aqui na sala, eles já estão vindo."
Esperei por demorosos cinco minutos até ver a cena mais horrorosa que vi na vida: Vando trazia arrastando os cadáveres de seus pais, com as bocas costuradas simulando sorrisos. Arrumados e conservados.

Quis correr o quanto podia, mas não consegui mover nem o mindinho.
"Ninguém mais vai chorar, todos vamos sorrir, Cidinha! Olha como estão lindos!"

Aos poucos, meu corpo foi se movendo e quando tentei correr, Vando me puxou pela perna. Peguei o vaso que estava em cima do centro e joguei na cabeça dele. Ele desmaiou, mas não foi o suficiente, o furei com os pedaços de vidro, com uma raiva descomunal. Me rendi à uma exaustão acumulada de meses e apaguei, na poça de sangue, enquanto os cadáveres dos pais dele nos assistiam. 

Acordei numa maca de hospital. Todos me apontavam o dedo e me chamavam de assassina. Minhas unhas ainda tinham o sangue de Vando. Minha mãe pousou a mão em meu ombro:
"O que você fez, Cidinha? Por que fez isso?"
"Ele estava me perseguindo e matou os próprios pais, isso ninguém vê?'
"Está louca? Os pais dele estão lá fora, não conseguem entrar no quarto... Disseram que te receberam muito bem na noite de ontem, e quando deixaram vocês sozinhos, você matou o filho deles."
"Não! Eles estão mortos! O Vando matou eles eu vi eles mortos!"

Vi minha mãe se distanciar de mim. Vi olhos fervorosos de ódio se jogarem em meu corpo. Vi um homem me algemando e me levando num carro preto.

Vando não estava lá. Ninguém mais estava lá. E quando olhei pela janela de trás, me vi lá fora... Cansada e precisando de um pouco de atenção. Chorando... Acenei para eu mesma e já não sabia distinguir o real do fantasioso.

Minha cabeça está bagunçada. O único pensamento firme que tenho é que não deveria ter esquecido de mim em momento algum.

- Juliane França

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